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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Ratinhos na Era do Gelo

Estou elaborando um projeto relacionado à filogeografia de roedores, sob orientação de um dos professores de minha faculdade. Vamos levantar as variações intra-específicas em diversas populações de Euryoryzomys russatus, um roedor da Mata Atlântica. Iremos utilizar dados morfológicos (cor do pêlo, tamanho das vibrissas, formato dos pés etc.), morfométricos (tamanho dos ossos, medidas do crânio, dos dentes) e moleculares (seqüência do gene Citocromo b do DNA mitocondrial) e confrontá-los com os aspectos físicos do ambiente (como morros, rios e outras barreiras) para saber com maior certeza se há diferenças entre os ratos do Nordeste e do Sudeste, e se houver, se ela está relacionada ao ambiente.

A filogeografia é a ciência que estuda a distribuição geográfica das espécies e as relações de parentesco entre elas. É bastante interessante, pois ela muitas vezes é capaz de oferecer informações preciosas para se descobrir alguns episódios da história evolutiva da vida. Por muito tempo, ela foi desenvolvida em parceria com a paleontologia e a taxonomia. Tudo era muito baseado nas características do corpo: medidas, peso, comprimento dos ossos, disposição dos vasos sanguíneos no crânio, cor da pele, pêlo e penas entre outras.

Com o avanço das tecnologias de leitura do DNA, o trabalho da filogeografia tem se tornado muito preciso. Diversas seqüências do DNA são praticamente idênticas em todos os animais. Assim, quanto mais diferente duas seqüências forem, mais distante pode ser a relação entre elas. Algumas espécies variam bastante de cor, tamanho ou hábito, mas se a seqüência do DNA for muito próxima, o parentesco entre elas também é. E a união dos trabalhos taxonômico e molecular tem gerado resultados importantes e possibilitado a comparação entre diferentes cenários evolutivos, mostrando quais são os mais prováveis para aquela(s) espécie(s).

Vou contar-lhes um exemplo breve. Abothrix olivaceus e Abothrix xanthorhinus são duas espécies de ratinhos que vivem no Chile e na Argentina. O primeiro habita o oeste da cordilheira dos Andes, e o segundo, o leste – a Patagônia. Em Bariloche – próximo à divisa entre Chile e Argentina –, foram encontradas as duas espécies, e muitos deles pareciam ser híbridos entre elas, ou seja, resultado do cruzamento entre duas espécies distintas, apresentando características intermediárias.

Alguns estudiosos do assunto resolveram pesquisar melhor o assunto e buscar uma solução: afinal, será que Abothrix olivaceus e Abothrix xanthorhinus são duas espécies diferentes ou são uma única espécie em processo de divergência? Será que são duas espécies com dois ancestrais diferentes ou ambas possuem o mesmo ancestral? Os cientistas coletaram mais destes roedores em locais onde era comum o encontro das duas espécies e analisaram o DNA dos bichos.

Eles constataram algumas coisas importantes: a separação entre as espécies provavelmente ocorreu após a ultima glaciação do Pleistoceno, há aproximadamente 18 mil anos, quando o gelo cobria toda a cordilheira dos Andes, separando o Chile da Argentina por meio de uma barreira branca congelante. Também perceberam que os A. olivaceus do norte do Chile tinham a seqüência de DNA mais distante do restante dos A. olivaceus e dos A. xanthorhinus. Outra coisa: o DNA dos diferentes A. xanthorhinus era mais próximo dos A. olivaceus do que dentre eles mesmos, ou seja: eles coletaram vários “A”s vários “B”s. Ao analisar os DNAs dos “A”s e “B”s, notaram que os “B”s estão mais próximos dos “A”s do que de outros “B”s. E agora?

Então os cientistas elaboraram duas histórias (hipóteses) que fossem capazes de contar como Abothrix olivaceus e xanthorhinus se comportaram durante o passado:

Cenário 1: o gelo poderia ter isolado duas populações distintas: uma ao norte do Chile, de A. olivaceus, e outra ao norte da Patagônia, de A. xanthorhinus. Conforme as geleiras foram recuando, as duas espécies foram explorando as terras mais ao sul, e posteriormente acabaram se encontrando e se intercruzando nas regiões dos Andes, gerando os híbridos. Neste caso, cada espécie teria sua própria população ancestral (bolinhas no mapa). Este cenário é descrito como modelo de divergência de vicariância alopátrica, ou seja, quando duas espécies/populações de regiões diferentes se encontram e se cruzam (vicariância).


Cenário 2: o gelo teria isolado uma única população de A. olivaceus no norte do Chile. Conforme o gelo foi recuando, a espécie foi colonizando as terras mais ao sul e se espalhando para o lado leste dos Andes. Estas novas populações do leste dos Andes foram se tornando diferentes daquelas do Chile. Assim, as duas espécies que vemos hoje de Abothrix tiveram, no passado, apenas uma população ancestral comum. Este cenário é chamado de modelo de divergência com fluxo gênico, ou seja, as duas espécies de hoje eram apenas uma no passado, que se dividiu e se espalhou, dando origem a duas populações diferentes, uma a oeste da cordilheira (hoje A. olivaceus) e outra a leste (hoje A. xanthorhinus), limitando o cruzamento entre elas devido às montanhas servirem como barreiras.


Recapitulando:

A – Os Abothrix olivaceus do norte do Chile são diferentes de todo o resto, dando suporte à hipótese de uma população original de A. olivaceus nessa região na era glacial (Cenários 1 ou 2);

B – As análises de DNA demonstraram que os Abothrix xanthorhinus são mais próximos dos Abothrix olivaceus do que de outros Abothrix xanthorhinus. Isso não é compatível com o Cenário 1, pois se as duas espécies tivessem dois ancestrais diferentes, o DNA de uma espécie seria diferente do da outra, e não semelhante;

C – Quantificando as diferenças entre as duas espécies, ficou evidente que se tratavam de populações com um único ancestral (Cenário 2), pois haviam muitas diferenças entre um rato e outro, e poucas entre o conjunto de ratos do Chile e o conjunto de ratos da Argentina.

Resultado do estudo: existem fortes indícios que apontam para a ancestralidade comum entre A. olivaceus e A. xanthorhinus e até mesmo coloca em dúvida se são duas espécies diferentes ou se não passam de uma só (A. olivaceus + A. xanthorhinus = A. olivaceus, apenas), com duas populações diferentes em processo de divergência. Seriam necessários mais alguns estudos com as populações da Argentina, descoberta de fósseis e estudos semelhantes com outras espécies para dar maior certeza do que realmente aconteceu no passado.

Realmente, não podemos voltar no tempo e saber exatamente a história destes ratinhos pela América do Sul, porém temos ferramentas poderosíssimas que permitem testar as diferentes hipóteses evolutivas e demonstrar quais delas são mais prováveis, de acordo com os dados que obtemos.

Referência bibliográfica: SMITH, M.F.; KELT, D.A. & PATTON, J.L. 2001. Testing models of diversification in mice in the Abothrix olivaceus/xanthorhinus complex in Chile and Argentina. Molecular Ecology, nº 10, pgs 397-405.

3 comentários:

Luiz Claudio Santos de Souza Lima disse...

Olá rapaz, parabéns pelo blog!


Fico feliz de ver um biólogo que curte evolução. Não entendo muito bem a raridade disso, mas acho que é questão de afinidade.

Estou com um projeto pessoal de escrever sobre a evolução e sua contribuição para a pesquisa médica. Se tiver algum material ou artigo e puder me mandar eu agradeceria muito.


Sou médico-oftalmologista e atualmente faço mestrado em ciências médicas. O material não é para tese não. A evolução é um passatempo que me ajuda muito a pensar.

Um forte abraço,

Patola disse...

Para o 'sobre o ombro de gigantes':

Um livro que acho inspirador sobre evolução e medicina é o Survival of the Sickest. Comprei na FNAC de Campinas por menos de doze reais e li em duas semanas. Não sei por quê, a versão em português era muito mais cara, 54 reais.

Luiz Claudio Santos de Souza Lima disse...

Patola,


Obrigado. Vou procura-lo sim. Vau ajudar no meu projeto.

Um forte abraço.